Por apenas um pouco de atenção

A primeira dica para novas estratégias de políticas públicas direcionada a menores, moradores de rua é bem simples: amor. Sabe o que é? Pois é, háquem negue o amor e prefira continuar insistindo que tudo deve estar no campo pragmático. Mas nem tudo se resolve na prática. E nesse caso a lógica seria: um menino de 13 é irrecuperável. Será mesmo? Foi o que suspeitou Margherit Duvas, uma pedagoga francesa interpretada por Maria de Medeiros.

Para a pedagoga, nenhuma criança poderia ser considerada irrecuperável. E Essa é a comprovação que Margherit quer provar com uma pesquisa. Esse é o motivo que a trouxe ao Brasil.  Conversando com crianças da FEBEM – Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor -, ela pretende comprovar isso e encontrar formas para recuperar as crianças, ditas “sem futuro”. Mas é durante essa pesquisa que a pedagoga francesa conhece Roberto. O Contador de História, de Luiz Villaça, é um filme baseado na vida de Roberto Carlos Ramos.

Alinear, com volta de câmera, mudança de perspectiva da câmera, imagens tremidas para alguns movimentos. Tudo, propositalmente, para compor a história de um menino de rua, com potencial criativo enclausurado. Ele só precisava de atenção. Um menino que aos seis anos foi deixado pela mãe na FEBEM – lugar que ela julgava melhor para educação de seu filho. Roberto, ao invés de educação, deparou-se com as fracas estruturas do Estado, que o joga para margem da sociedade ao invés de fazer dele, parte dela. Menino de rua, bandido ou vítima do trafico e das drogas de rua, esse poderia ter sido o destino de Roberto, não fosse gravador de Margherit.

Sim, o gravador! A partir desse aparelho, Roberto percebeu a possibilidade de contar sua história e, além disso, que alguém se interessaria em ouvi – lá depois. Uma simples entrevista criou laços de amizades. E sem perceber, Margherit, provou que Roberto poderia ser recuperado com a política pública mais eficaz que já existiu, sustentada por três pilares: atenção, carinho e educação. Margherit foi mãe, família e professora.

Juliana Campos Chaves

FICHA TÉCNICA

Direção: Luiz Villaça

Produção: Francisco Ramalho Jr. e Denise Fraga

Roteiro: Mauricio Arruda, José Roberto Torero, Mariana Veríssimo, Luiz Villaça

Montagem: Umberto Martins ABC

ATORES

Margherit Duvas: Maria de Medeiros

Pscicologa: Malu Galli

Mãe de Roberto Carlos: Ju Colombo

Roberto Carlos:

6 anos – Marco Antonio

13 anos – Paulo Henrique

20 anos – Cleiton dos Santos da Silva

Entrelinhas e Acordes

Palavras pequenas, palavras inteiras. Essas palavras doces, amargas e, muitas vezes, tão incisivas e que nos invadem pela poesia. Essa poesia em forma de música, como um sopro, um suspiro de alguém que desejou falar, que desejou cantar a poesia do cotidiano, da ficção e do coração. Assim é a Palavras [En]Cantada, de Helena Solberg e Marcio Debellian, traçando um paralelo entre a literatura e música popular brasileira.

Uma mesma palavra pode ter diversas tonalidades, assim é a riqueza da nossa língua. Tão rica de sonoridade, tão rica de alma e de vida. Uma cultura musical, sempre em transformação. Foi assim com o samba, que nasce no morro nas vozes de Noel Rosa, Cartola, Ismael Silva e tantos outros poetas que associavam sua palavra a simples acordes. É o cotidiano de quem vive no morro, e como lembra Chico Buarque de Hollanda, acompanhado de uma risada debochada e crítica: “Pois é, o pessoal subia no morro para comprar música. Subia no morro para comprar música.”

E dessa complexa simplicidade, cheia de ousadia que surge Dorival Caymmi, ao som das ondas do mar. A emoção deixa úmidos os olhos de Maria Bethânia. Com devoção a essa poesia bruta, que dispensa lapidação. Aos poucos a música se desconstrói e constrói novidades. Para quem viveu o final da década de 50, não havia antes, nada parecido com a Bossa Nossa. A música de Vinícius de Moraes, Tom Jobim, João Gilberto e tantos outros mudou completamente toda a música popular brasileira. A Bossa Nova foi, sem dúvida, um marco para tudo que surgiria depois. Assim como o Tropicalismo, com versos desestruturados, dissociados de sentido e com o intuito de não seguir uma cartilha de teoria musical.

Os Mutantes são um exemplo dessa transformação. O tropicalismo surge para quebrar a regra, desprovido de explicação pré-estabelecida para existir. Como Caetano vai dizer após cantar Alegria, Alegria. “Eu falo de coca-cola, de bomba e de Brigitte Bardot, porque eles estão ai, porque existem”. E na mesma época, associada aos diversos ritmos regionais, a guitarra trazia nova sonoridade. Porém, não foi tão facilmente aceita. Houve até uma passeata contra a guitarra. Mas essa não adiantou, não havia mais espaço para proibir, havia espaço para criar, para musicar.

O documentário ainda traça um paralelo com a trajetória de Lirinha, do Cordel de Fogo Encantado. Ele também sofreu essa influência, ao descobrir que para fazer a poesia não era preciso rimar, nem ao menos ter um sentido aparente. Porém, hoje, esse estilo é bem comum, como se pode observar na música de Djavan, não sabemos ao certo do que ele canta, sabemos que fala de amor, apenas.

Nessa transcendência musical que se absorve por todas as partes do corpo, batidas primitivas do tambor associadas ao som de outros instrumentos eletrônicos e da poesia rebuscada. É dessa forma que o Cordel traz a cultura regional e a literatura para todos. Como no rap de Ferréz e BNegão que com uma música urbana e de protesto tentam assimilar a literatura como algo acessível a todos. Algo não elitizado e que como Ferréz mesmo conclui: “A literatura deveria compor a cesta básica.”

E é nesse vão entre literatura e poesia que a música encaixa-se com perfeição. Aqui, não cabe o preconceito, não cabe a dissociação. O filme está falando da “palavra”, mais especificamente, da palavra brasileira, com todas suas misturas, com toda criatividade e tonalidades permitidas e proibidas. Finalizo, com a seguinte provocação, tal como no filme: A poesia pode então virar música? A música é então poesia?

Juliana CC

FICHA TÉCNICA

Direção: Helena Solberg

Produtor: David Meyer

Roteiro: Diana Vasconcellos, Helena Solberg, Marcio Debellian

Argumento e Co-Produtor: Marcio Debellian

Montagem: Diana Vasconcellos

Produtor Executivo: David Meyer

Informação Elementar:  Em cartaz nos cinemas de Porto Alegre

NADA VAI NOS SEPARAR

 

Memória. A minha é recente. Mas garanto, é intensa. Não consigo transpor em palavras. Mas chorei, de sorri e mais uma vez me apaixonei, por toda a minha vida. Eu pensei que era mais uma daqueles sessões de cinema, sozinha. É, eu tava triste no início. Eu queria companhia naquele momento. Mas eis que eu estava errada. Não era um filme qualquer. Não era um público qualquer. Era a torcida vermelho e branco. Eu não estava sozinha. E na poltrona em minha frente, Chico Spina.

Então, o emoção começa a ser projetada. Da sala do cinema para o Beira-Rio. É a história de um time, com 100 anos de vitórias e também derrotas. Mas, uma torcida apaixonada. Uma torcida de todas as idades. Uma torcida que sofre, teme e chora. Chora de tristeza, de alegria por seu time. Por uma paixão que não se explica. Essa é a magia do futebol. Sentimentos aflorados, Todo mundo ali, torcendo, amando algo que não teu, mas é teu e todos aqueles que se vestem de vermelho e branco. Que tatuam o símbolo do Inter no braço, que vendem eletrodomésticos e móveis para ir ver seu time campeão no Japão. É a tão esperada vitória da minha geração. E o legal foi também a surpresa de rever meu professor de geografia lá, contando a nossa história.

Eu queria mais. Eu me senti mais. Ao meu lado, um senhor tinha espasmos ocasionados pela lembrança do time de 60, 70, 80 com Tesourinha, Escurinho e Falcão e outros tantos. Uma memória que eu não compartilho, mas sinto. É como se eu estivesse lá. Em 1900 e tantos gols. Não adianta brigar com ele quando perde, dizer que não vai mais torcer, que não quer mais saber, porque no outro jogo tá todo mundo lá de novo, mais uma vez para gritar…COLORADO COLORADO NADA VAI NOS SEPARAR….

Juliana CC

 

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Ficha técnica:

Diretor: Saturnino Rocha

Roteiro: Luiz Augusto Fischer

Montagem: Giba Assis Brasil

Produção: Gustavo Ioschpe

Trilha Sonora: Fornazzo

Direção de Fotografia: Eduardo Izquierdo e Jorge Henrique ‘Boca’

Edição de Som e Mixagem: Lucio Dorfman

Do Rio de Janeiro para Budapeste

Quantos tropeços devem ocorrer para se aprender uma língua estrangeira? Inspirado no livro de mesmo nome de Chico Buarque, Budapeste é um filme para encher os olhos. Encher os olhos com as lindas paisagens com a suavidade de um trama poética e diferente para o cinema Nacional.
Assim como no livro, José Costa – interpretado por Leonardo Medeiros – é um ghost-writer. Um escritor que escreve para personalidades e nunca é reconhecido, pois seu nome não é citado como o autor. Ele, portanto, escreve sem levar a fama. Essa é a questão principal, porém, outro assunto em plano de fundo está relacionado ao desafio de apreender uma nova língua. Nada mais complicado que o Húngaro, definida pela personagem Kriska como o único idioma para falar com o Diabo.
Mas o estompim da história é quando Costa escreve um livro sobre um estrangeiro no Rio de Janeiro, o título do livro é O Ginógrafo. O livro vira um sucesso. Até a jornalista, apresentadora de um telejornal, Vanda (Giovanna Antonelli), mulher de Costa, se deslumbra com a obra. Costa, atormentado pela suspeita de Vanda estar interessada no escritor, viajar para Budapeste.
Ele deseja esquecer tudo. O português, a vida no Brasil. Em uma livraria ele conhece Kriska (Gabriella Hámori). Será com ela que aprende a falar e escrever húngaro. Por ela, Costa se apaixona. O ex-marido de Kriska, também é um escritor. Costa, o conhece em um encontro de ghost-writer, em Budapeste. Já adaptado à língua, ele começa a escrever monografias, livros de poesia e outros escritos no novo idioma. No auge de sua aproximação com o país, ele é deportado, pois o visto está vencido. De volta ao Brasil. Vai atrás da mulher e do filho. Em pouco tempo, recebe um telefonema para voltar para Budapeste.

Chico Buarque aparece no final do filme

Chico Buarque aparece no final do filme

Quando ele chega, uma multidão está lhe esperando, pedindo autógrafo, inclusive o Chico Buarque pede autógrafo à Costa. Mas ele não havia escrito nenhum livro. Kriska, está lá, orgulhosa dele. E com o livro na mão – Budapeste. Ele diz: – Não, mas não é meu esse livro. Mas ninguém acredita e sorri para ele. Costa, então experimenta o outro lado. O lado da fama, da fama daquilo que ele não fez.
Contudo, assim como o livro, não é um filme linear, o espectador não consegue definir ao certo o que é devaneio, sonho ou realidade, passado, presente ou imaginação. Ao assistir esse filme, estamos diante de um problema incomum e pouco refletida, pois podemos estar diante de vários ídolos falsos, pois terceiro podem estar por trás de poesias, músicas e livros que tanto admiramos. Por isso, e pela maestria da obra, vale a pena conferir, tanto o livro de Chico Buarque quanto o filme de Walter Carvalho.

Confira o trailer:

“Uns pagam com dinheiro, outros com o coração”

Última Parada 174, Bruno Barreto

Dessa vez eu não estava só. Por um instante, esse fato causou-me estranhamento. Assistir ao Última Parada 174 ao lado de um amigo, nada comum para alguém acostumada a longas jornadas de cinema solo. Realmente, a percepção é diferente. A gente pode compartilhar sentimentos, dúvidas e reflexões antes, depois e durante a sessão. Talvez, por essa razão, esteja tão difícil preencher esses espaços em branco.

Bruno Barreto conseguiu me iludir. Por um momento, achei que tudo aquilo era verdade de novo. Mas era um sonho. Um sonho que durou 111 minutos e algumas horas depois continuei a acreditar nele. Oito anos, esse é o intervalo de tempo para refletir sobre uma sociedade doente. Em 2002, José Padilha propôs novas abordagens ao caso no documentário Ônibus 174. Esse episódio poderia ser datado para hoje, não importa, nada seria diferente. A mídia estaria lá pronta para descontextualizar e informar o fato na sua forma mais superficial.

Pena que o sonho demore tanto para ser assimilado. Tantos anos de espera, para assistir a um filme, com personagens ficcionais, frases elaboradas, cenários planejados. Tudo de mentira, mas o resto todo era verdade. O cinema fez o que a televisão ignorou. Dados ao vivo, contribuíram e alimentaram a sociedade em sua forma estúpida de julgar o ser humano individualmente. Somos parte de um mesmo sistema, somos um e o outro, e mesmo assim, estamos sós.

Ao meu lado, alguém que eu posso falar meus devaneios e, por mais idealistas que sejam esses meus pensamentos, ele sempre me surpreenderá com um tom de libertário voraz. É preciso acordar e parar de se afogar em mares tão rasos. Nessa história, mais uma vez, o protagonista foi o poder. O poder está entranhado nas veias do ser humano e corre feito sangue. Qualquer forma de ser mais ou menos poderoso nos afasta. Qualquer forma de controlar nos descontrola.

Juliana CC

Férias da Ditadura

O ano que meus pais sairam de férias, de Cao Hamburger

Novamente o futebol permeia a história. Os gritos calados da repressão se misturam com os gritos de “Gol”. É tempo de Copa do Mundo. 1970, o ano de ver Pelé e Tostão em campo. Enquanto que nos porões da ditadura, a música que tocava não era “Pra frente Brasil”. E meses antes do primeiro jogo da Copa, os pais de Mauro (menino de 12 anos) partiram de “férias” e deixaram o menino com o avô.

Mauro, sem nem mesmo saber o porquê, sofria com a Ditadura Militar. A paixão pelo futebol e a chegada da Copa tornaram os dias de Mauro e de todo o Brasil mais amenos. A alegria a cada grito de “Gol” perpassava a dor de um dos anos mais violentos do regime.

Assim como em Vozes Inocentes, Cao Hamburger conta essa sutileza e pela óptica de uma criança o sofrimento de uma nação em “O ano que meus pais sairam de férias” . De um país, que assim como outros da América Latina, esteve atrasado cultural e politicamente. É para não esquecer, que Hamburger realiza esse filme.

Juliana CC

Hora de passar a bola

Uma família formada por Cluesa, grávida do quinto filho. O mais novo, Reginaldo, quer conhecer o pai. Dario sonha em ser jogador de futebol. Dinho busca na religião a salvação de um passado conflituoso. Dênis ganha a vida como motoboy. Os pilares dessa família é a invisibilidade. De alguma forma, todos eles esperam alguém que perceba seu lance perfeito, seu movimento e, principalmente, seu valor como seres humanos.

Diante de uma cidade como São Paulo, você é um número, entre os mais de 10 milhões de habitantes. Em cada rua e esquina, uma estória oculta, invisível para uma sociedade tão numerosa e preocupada demais para perceber os conflitos diários de seus semelhantes.

Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas é uma filme cheio de verdade. Característica que nos deixa refletir horas depois da sessão. Oriundo de uma escola de documentaristas, Salles investe no clima de realidade. Câmera na mão, atores da comunidade e uma temática cotidiana incluem essa obra ficcional em uma tendência inspirada no documentário.

Juliana CC

Longe demais

Era Uma Vez…, de Breno Barreto

Estação Mathias Velho ou será Canoas? Desci na indicada por uma senhora falante. Não lembro qual era, lembro da música que tocava nessa Estação:”Eu puxo o seu cabelo, faço o que você gosta…” A passarela estava em ritmo de funk. Segui até o shopping, eram quatro ou três quadras. Lá não tocava a mesma música. Havia apenas mil cheiros, um cheiro de nada prevalecia. Meu destino é o cinema. Eu estava lá, mais uma vez, protegida, controlada por câmeras e vigias.

Segura e distante…

Atrasada para sessão, invento para moça de azul da bilheteria que alguém me espera na sala. Ela olha e diz com um sorriso no canto da boca sem mostrar os dentes: Não há ninguém nessa sala. Eu estranho e insisto que há uma sessão nesse horário. A moça continua a falar: Sim, tem uma sessão só não começamos porque não há ninguém lá. Eu então retomo minha mentira: A pessoa que eu espero ainda não chegou então, mas verei o filme mesmo assim. Finalizo com um sorriso amarelo. Pego o ingresso e vou adiante.

Pronto. Cheguei a tempo, mas ninguém mais chegou. Escolho um lugar estratégico, de melhor ângulo. Desligo o celular para não atrapalhar os fantasmas que me acompanham e assistem ao filme “Era uma vez…”, de Breno Silveira. Diferente do seu primeiro longa-metragem “2 filhos de Francisco”, que moveu mais de 5,4 milhões de brasileiros às salas de cinema, esse último não teve a mesma repercussão. Mas, nessa obra, Breno está, nitidamente, mais maduro. Fato que não se resume à excelência técnica.

Bem, é mais ou menos assim: Era uma vez um menino pobre da favela do Cantagalo e uma menina rica que mora na Vieira Souto, avenida em frente à praia de Ipanema. Os dois se conhecem e se apaixonam. Porém, vivem de formas bem distintas. Ele trabalha para um quiosque em frente ao apartamento dela (na beira da praia). Dé conheceu, desde cedo as injustiças do mundo. Ela, nem sabia que ele existia. Ele sonhava com ela todas as noites e ficava a imaginar mil formas de se aproximar. Perto? Não, longe. A renda era o que os tornava tão distantes.

Tudo para ser uma mera história de amor. Uma fábula como a do plebeu e da rainha. Breno quer, a partir dessa adaptação ‘shakespeareana’ de Romeu e Julieta, mostrar a realidade da favela versus a realidade de quem vive longe dela. Nesse caso, Dé e Nina não têm famílias rivais, mas classes sociais diferentes. É a desigualdade que os impede de viver esse romance.

As grades do condomínio de Nina, ao mesmo tempo em que a protegem, separam-na de Dé. O amor desfaz esse portão de ferro. Desfaz o preconceito e as injustiças. Porém, não vence a guerra. Breno quer alertar a sociedade para essa carência de afeto, de amizades sem interesses, dessa falta de verdade e respeito entre os homens. O filme pede um basta. Um fim para essa violência que nos afasta um dos outros. Uma guerra, que como em qualquer outra, quem paga são os inocentes.

Enquanto o culpado dessa violência tem nome e se chama “poder”…

Juliana CC

Parada errada

Segunda-feira, 12 de junho de 2000. Ônibus da empresa Amigos Unidos, linha Central-Gávea, fica detido no bairro Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. São 14h30min quando o veículo estaciona e o assaltante faz uma mulher de reféns. A tortura encerra perto das 19h com a morte do seqüestrador e de uma passageira.

Sandro Barbosa do Nascimento é o protagonista dessa história. Sem uma razão clara, ele promove um espetáculo violento, uma amostra de uma guerra civil interminável. A mídia também é peça-chave. As cenas são narradas encobertas por uma história maniqueísta. Graças ao bandido, inicia-se mais um “shownalismo”.

O que fazer em uma hora dessa? A polícia deve defender a população de bem. Logo, Sandro é o personagem do mal. Aquele que, certamente, não terá um fim agradável. A sociedade quer ver ele morto. E clama por isso. Ele não é ninguém. É alguém invisível, portanto, não importa quantos Sandro´s são extintos por dia. Eles não existem.

Mentira!

Cegos. Sim, isso que somos. Deitamos em uma cama quentinha todos os dias. Alimentados por refeições variadas. Alegamos trabalhar para ter uma vida justa e integra. Acreditamos, hipocritamente, que a desigualdade é produto individual. Do tipo, “Vai trabalhar vagabundo”. Mas as oportunidades não são iguais. Enquanto eu freqüentava o jardim da infância e recebia todo carinho de meus pais e minha professora, os sandro´s estavam na rua. Sim, eles escolheram a rua para viver. Claro, que dúvida. Viver com uma família, estudar e brincar ou morar embaixo de um viaduto? O que uma criança iria escolher, hein?

A resposta vai depender de uma boa visão. Caso contrário procure urgentemente um oculista. O diagnóstico mais comum é a cegueira total. Para mim, Sandro é a vítima. Vítima de uma sociedade hipócrita, de uma política corrupta, de uma polícia mal preparada e da mídia. Ele queria ser visto por alguém, pelo mundo. As câmeras simbolizam a visibilidade que ele nunca teve. Naquele momento, ele era o diretor, mas, ao invés de uma câmera, ele tinha um revólver.

No documentário Ônibus 174, de José Padilha, todas as vozes dialogam para desvendar o caso. Não há um culpado, mas vários. Diante dos depoimentos, Sandro é o lado mais frágil. Ao contrário do que a imprensa quis mostrar, ele não era um mostro, mas um ser humano oculto nas ruas do Rio de Janeiro.

Sem GCs (geradores de caracteres) os depoimentos iniciam, como uma forma de não identificar o nome e as funções de cada entrevistado. As vozes contam esse episódio. Padilha usa imagens de arquivo, mostrando um trabalho de apuração e respeito ao público inerente ao papel social do jornalista, o qual, muitas vezes, não é realizado.

Em uma das cenas, Sandro grita pela janela: “Eu vou matar todos aqui. Vocês não chegaram e mataram meus amigos na Candelária. Eu não tenho nada a perder.” Nesse instante, o seqüestrador se mostra como uma vítima antiga da Chacina da Candelária – mais de 39 crianças de rua foram mortas. E a sociedade achou ótimo. Limpar a sujeira, tirar de suas vista aquilo que lhes incomoda. Esse é o papel da polícia e do governo. Nos cegar.
Juliana CC

Ônibus 174, de José Padilha

Animal racional, será mesmo?

Animal racional. Será mesmo?

Diz a ciência que o ser humano se diferencia dos outros animais por ser racional. Mas algumas atitudes não estão de acordo com o que se entende de racionalidade. Aliás, o homem, ou melhor, Homo sapiens sapiens assume certas atitudes que desconstroem a idéia de um ser intelectualizado.

Pensar. Às vezes, o ser humano não pensa ou quem sabe por pensar demais ele produz bombas para destruir seres da sua própria espécie. Bombas variadas. Umas em forma de bala de revólver, de desprezo, de corrupção. Essa, talvez seja a verdadeira antropofagia sugerida pelas obras de Tarsila do Amaral. Atitude encontrada fora das aldeias indígenas. O ser antropofágico está no meio urbano, nas esquinas malditas, pedindo esmola para sobreviver, enquanto seus governantes pedem aumento de salário e bebem o doce néctar do poder.

Sentada, em uma sala de cinema qualquer, espero as luzes se apagarem e o som aumentar de forma gradual. Ao meu lado esquerdo não há ninguém, do direito, outra poltrona vazia. É hora de desligar o celular e esquecer de tudo lá fora. Primeira cena, uma situação bem familiar. Os personagens estão no metrô. Quem utiliza esse meio de transporte, reconhece seu valor como experiência antropológica. Para quem não tem um iPod ou qualquer outro radinho e fones de ouvido, o que resta é observar.

Em cada canto, uma história. Um menino de uns oito anos, com camiseta branca com a gola repuxada e de chinelos nos pés canta uma música sertaneja. Logo, entra uma moça muda vendendo uns cartões com mensagens de auto-ajuda. No banco da lateral, um casal com traços orientais conversa em japonês. O que será que eles falam tanto? Não sei esse idioma. Parece que eles estão brigando, mas ela está dormindo. “Estação Mercado”. Reta final. Ele a beija, mas, ela ainda dorme. Ele desce do trem, ela fica lá, ninguém vai acordá-la. Todos estão cheios de compromisso. Ocupados demais.

Do metrô para o Mercado Público. Para o ônibus, até chegar ao trabalho. A lente treme. A moça está bêbada. Mas, depois da balada, ela vai cumpri seu papel social, como camareira de um apartamento da capital gaúcha. Eu, ainda estou ali, sentada e envolvida pelo movimento da câmera. Espera. Isso não é real. Uma mulher, perseguida por pombos dentro do quarto. Ela está sem roupa. Pombos nos perseguem quando andamos pelas ruas de Porto Alegre, principalmente, no Centro, ali, próximo à Esquina Democrática, onde também ficam os ativistas, comunistas e representantes de algum partido político, mas só em dia de sol. Quando chove, até os pombos se escondem.

Já é noite, um velhinho atravessa a João Pessoa em direção ao Parque Redenção. Primeiro ele encontra um escritor louco, que pede para que edite seu livro sobre espécies de macaco. Depois, um homem de terno o convida para ir a uma festa de quinze anos de uma família Evangélica. Da música de louvor para o punk rock, assim, eu acordo. Espero todos levantar e espero os letreiros passarem pela tela. Ouço comentários. Os negativos são os que imperam. A maioria de críticos de cinema das mídias convencionais da capital. Bem, quem gosta de apanhar não é mesmo. Um soco no estomago dói bastante.

Um homem gordo de uns 40 anos olha para sua acompanhante e diz: “Que merda é essa.” Quando vai cumprimentar os responsáveis pela obra, ele elogia: “Muito bom esse filme, gostei mesmo.” E ainda ganha um DVD. Ele foi o único que ganhou, deve ser alguém importante. Para mim, nada fez o menor sentido, mas quem disse que vivemos em um mundo de sentidos perfeitos. A ordem e a desordem, o bem e o mal. Está tudo misturado. Indefinido. Para mim, o que faz sentido soa falso demais.

Gustavo Spolidoro explora em seu longa-metragem “Ainda Orangotangos” esse lado irracional da espécie. O diretor apresenta isso em um único plano-seqüência de 81 minutos. As cenas mostram o cotidiano de 15 pessoas que transitam pela cidade de Porto Alegre. Nesse filme não há personagem principal, a protagonista é a lente, a câmera. Ela que está atenta a qualquer movimento estranho, seja no sonho ou na vida real.

Em 14 horas, coisas “primitivas e sofisticadas” acontecerão ao som de clássicos do rock gaúcho, como Amigo Punk e Morte por tesão. Além das bandas da nova geração, Superguidis e Pata de Elefante. Uma trilha própria para essa fusão de realidade e sonho.

Spolidoro não se prende em contar uma história, mas em formar uma rede de significados com som e imagem. Essa obra é para ver, ouvir e sentir. As relações, deixe por conta das coincidências, pois, acredite, elas não serão meras semelhanças. Para os curiosos, o filme estréia dia 29 de agosto em Porto Alegre e 5 de setembro em São Paulo e no Rio de Janeiro. Para aqueles que não querem enxergar o mundo a sua volta, aproveite, abra os olhos e assista à doce realidade que lhe espera.

Juliana CC