Animal racional, será mesmo?

Animal racional. Será mesmo?

Diz a ciência que o ser humano se diferencia dos outros animais por ser racional. Mas algumas atitudes não estão de acordo com o que se entende de racionalidade. Aliás, o homem, ou melhor, Homo sapiens sapiens assume certas atitudes que desconstroem a idéia de um ser intelectualizado.

Pensar. Às vezes, o ser humano não pensa ou quem sabe por pensar demais ele produz bombas para destruir seres da sua própria espécie. Bombas variadas. Umas em forma de bala de revólver, de desprezo, de corrupção. Essa, talvez seja a verdadeira antropofagia sugerida pelas obras de Tarsila do Amaral. Atitude encontrada fora das aldeias indígenas. O ser antropofágico está no meio urbano, nas esquinas malditas, pedindo esmola para sobreviver, enquanto seus governantes pedem aumento de salário e bebem o doce néctar do poder.

Sentada, em uma sala de cinema qualquer, espero as luzes se apagarem e o som aumentar de forma gradual. Ao meu lado esquerdo não há ninguém, do direito, outra poltrona vazia. É hora de desligar o celular e esquecer de tudo lá fora. Primeira cena, uma situação bem familiar. Os personagens estão no metrô. Quem utiliza esse meio de transporte, reconhece seu valor como experiência antropológica. Para quem não tem um iPod ou qualquer outro radinho e fones de ouvido, o que resta é observar.

Em cada canto, uma história. Um menino de uns oito anos, com camiseta branca com a gola repuxada e de chinelos nos pés canta uma música sertaneja. Logo, entra uma moça muda vendendo uns cartões com mensagens de auto-ajuda. No banco da lateral, um casal com traços orientais conversa em japonês. O que será que eles falam tanto? Não sei esse idioma. Parece que eles estão brigando, mas ela está dormindo. “Estação Mercado”. Reta final. Ele a beija, mas, ela ainda dorme. Ele desce do trem, ela fica lá, ninguém vai acordá-la. Todos estão cheios de compromisso. Ocupados demais.

Do metrô para o Mercado Público. Para o ônibus, até chegar ao trabalho. A lente treme. A moça está bêbada. Mas, depois da balada, ela vai cumpri seu papel social, como camareira de um apartamento da capital gaúcha. Eu, ainda estou ali, sentada e envolvida pelo movimento da câmera. Espera. Isso não é real. Uma mulher, perseguida por pombos dentro do quarto. Ela está sem roupa. Pombos nos perseguem quando andamos pelas ruas de Porto Alegre, principalmente, no Centro, ali, próximo à Esquina Democrática, onde também ficam os ativistas, comunistas e representantes de algum partido político, mas só em dia de sol. Quando chove, até os pombos se escondem.

Já é noite, um velhinho atravessa a João Pessoa em direção ao Parque Redenção. Primeiro ele encontra um escritor louco, que pede para que edite seu livro sobre espécies de macaco. Depois, um homem de terno o convida para ir a uma festa de quinze anos de uma família Evangélica. Da música de louvor para o punk rock, assim, eu acordo. Espero todos levantar e espero os letreiros passarem pela tela. Ouço comentários. Os negativos são os que imperam. A maioria de críticos de cinema das mídias convencionais da capital. Bem, quem gosta de apanhar não é mesmo. Um soco no estomago dói bastante.

Um homem gordo de uns 40 anos olha para sua acompanhante e diz: “Que merda é essa.” Quando vai cumprimentar os responsáveis pela obra, ele elogia: “Muito bom esse filme, gostei mesmo.” E ainda ganha um DVD. Ele foi o único que ganhou, deve ser alguém importante. Para mim, nada fez o menor sentido, mas quem disse que vivemos em um mundo de sentidos perfeitos. A ordem e a desordem, o bem e o mal. Está tudo misturado. Indefinido. Para mim, o que faz sentido soa falso demais.

Gustavo Spolidoro explora em seu longa-metragem “Ainda Orangotangos” esse lado irracional da espécie. O diretor apresenta isso em um único plano-seqüência de 81 minutos. As cenas mostram o cotidiano de 15 pessoas que transitam pela cidade de Porto Alegre. Nesse filme não há personagem principal, a protagonista é a lente, a câmera. Ela que está atenta a qualquer movimento estranho, seja no sonho ou na vida real.

Em 14 horas, coisas “primitivas e sofisticadas” acontecerão ao som de clássicos do rock gaúcho, como Amigo Punk e Morte por tesão. Além das bandas da nova geração, Superguidis e Pata de Elefante. Uma trilha própria para essa fusão de realidade e sonho.

Spolidoro não se prende em contar uma história, mas em formar uma rede de significados com som e imagem. Essa obra é para ver, ouvir e sentir. As relações, deixe por conta das coincidências, pois, acredite, elas não serão meras semelhanças. Para os curiosos, o filme estréia dia 29 de agosto em Porto Alegre e 5 de setembro em São Paulo e no Rio de Janeiro. Para aqueles que não querem enxergar o mundo a sua volta, aproveite, abra os olhos e assista à doce realidade que lhe espera.

Juliana CC