Parada errada

Segunda-feira, 12 de junho de 2000. Ônibus da empresa Amigos Unidos, linha Central-Gávea, fica detido no bairro Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. São 14h30min quando o veículo estaciona e o assaltante faz uma mulher de reféns. A tortura encerra perto das 19h com a morte do seqüestrador e de uma passageira.

Sandro Barbosa do Nascimento é o protagonista dessa história. Sem uma razão clara, ele promove um espetáculo violento, uma amostra de uma guerra civil interminável. A mídia também é peça-chave. As cenas são narradas encobertas por uma história maniqueísta. Graças ao bandido, inicia-se mais um “shownalismo”.

O que fazer em uma hora dessa? A polícia deve defender a população de bem. Logo, Sandro é o personagem do mal. Aquele que, certamente, não terá um fim agradável. A sociedade quer ver ele morto. E clama por isso. Ele não é ninguém. É alguém invisível, portanto, não importa quantos Sandro´s são extintos por dia. Eles não existem.

Mentira!

Cegos. Sim, isso que somos. Deitamos em uma cama quentinha todos os dias. Alimentados por refeições variadas. Alegamos trabalhar para ter uma vida justa e integra. Acreditamos, hipocritamente, que a desigualdade é produto individual. Do tipo, “Vai trabalhar vagabundo”. Mas as oportunidades não são iguais. Enquanto eu freqüentava o jardim da infância e recebia todo carinho de meus pais e minha professora, os sandro´s estavam na rua. Sim, eles escolheram a rua para viver. Claro, que dúvida. Viver com uma família, estudar e brincar ou morar embaixo de um viaduto? O que uma criança iria escolher, hein?

A resposta vai depender de uma boa visão. Caso contrário procure urgentemente um oculista. O diagnóstico mais comum é a cegueira total. Para mim, Sandro é a vítima. Vítima de uma sociedade hipócrita, de uma política corrupta, de uma polícia mal preparada e da mídia. Ele queria ser visto por alguém, pelo mundo. As câmeras simbolizam a visibilidade que ele nunca teve. Naquele momento, ele era o diretor, mas, ao invés de uma câmera, ele tinha um revólver.

No documentário Ônibus 174, de José Padilha, todas as vozes dialogam para desvendar o caso. Não há um culpado, mas vários. Diante dos depoimentos, Sandro é o lado mais frágil. Ao contrário do que a imprensa quis mostrar, ele não era um mostro, mas um ser humano oculto nas ruas do Rio de Janeiro.

Sem GCs (geradores de caracteres) os depoimentos iniciam, como uma forma de não identificar o nome e as funções de cada entrevistado. As vozes contam esse episódio. Padilha usa imagens de arquivo, mostrando um trabalho de apuração e respeito ao público inerente ao papel social do jornalista, o qual, muitas vezes, não é realizado.

Em uma das cenas, Sandro grita pela janela: “Eu vou matar todos aqui. Vocês não chegaram e mataram meus amigos na Candelária. Eu não tenho nada a perder.” Nesse instante, o seqüestrador se mostra como uma vítima antiga da Chacina da Candelária – mais de 39 crianças de rua foram mortas. E a sociedade achou ótimo. Limpar a sujeira, tirar de suas vista aquilo que lhes incomoda. Esse é o papel da polícia e do governo. Nos cegar.
Juliana CC

Ônibus 174, de José Padilha